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4 - O Cachecol da Lesminha


Marieta acabara de voltar da Chapada dos Veadeiros cheia de carrapichos grudados nos fartos pelinhos. O único jeito foi tosar suruguinha, bem curtinho mesmo, e de nada adiantou reclamar.


"Poxa, sem meu pelinho comprido vivo com muito medo e frio". disse ela enquanto caminhava de um jeito baixinho, agachadinha, quase se arrastando e num mansinho como se gatinhando assim reconquistasse um pouco da capacidade de se camuflar perdida junto com seus pelinhos cortados.
Estava tão ensimesmada que nem sentia vontade de se aventurar. Ficava horas a fio se aquecendo ao sol. Seus dias passavam morosos, como acontece sempre que os pelos de alguém são cortados.
Foi num desses dias de pachorra que Marietinha viu um cadinho de seu pelo se movendo lentamente entre as folhas caídas do pé-de-murici. Ficou parada em espera curiosa e intrigada com aquele tufo de pelos irrequietos...
Sua paciente espera felina resultou no entendimento de que o tufo de pelos não andava sozinho, mas era levado por uma lesma molezinha e que deixava um rastro brilhante por onde passava. A lesminha seguia cerimoniosamente por entre as folhas secas do jardim.
Como ela era muito lenta Marietinha resolveu dar um empurrãozinho para ajudar. A lesminha indignada reclamou:  "Como ousa me empurrar? Você sabe com quem está falando? "Sei sim" - disse Marieta à lesminha. "Você é uma lesminha e está carregando um tufo dos meus pelinhos tosados. Sei também que você vai a algum lugar, então resolvi te ajudar  com um empurrãozinho e...
" Claro que vou a algum lugar - interrompeu rispidamente a lesminha - "Não fosse, porque estaria com esse cachecol tão bonito?"



Marieta preferiu não retrucar, mas pensou com seus bigodes que aquilo era um tufo dos seus pelos e não um cachecol. Decidida a permanecer quieta até crescer-lhe os pelos, resolveu deixar de lado a conversa e foi saindo do jardim em direção à toquinha da manilha para desfrutar de uma boa soneca.
Foi quando ouviu um "Ei! Psiu, psiu! Aonde pensa que vai? Volte já aqui!"
                                                                       
Era a Lesminha falando e esvoaçando o cachecol para chamar ainda mais a atenção sobre si. Marietinha bocejou. A Lesminha lhe dava sono com tanta lentidão.

Mas sua curiosidade a fez voltar para entender o que a Lesma friorenta queria .
A Lesminha pensou que Marieta voltara por obediência a ela, e reafirmou o poder que sentia fazendo um volteio com o cachecol. Não parava de falar e dar ordens: "Por que você não perguntou para onde vou? Como ousa passar por mim e não se morder de tanta curiosidade?".
Marieta disse à Lesminha que sua curiosidade não era dessa de morder. E pensando nisso ficou muito aliviada..


"Santa ignorância!" - resmungou a Lesma - Não é possível conversar com alguém que não entende nada! Olha minha querida, se quer mesmo saber esse cachecol veio direto de Pré-Paris, onde assisti a um desfile Prèt-à-porte e você, logo se percebe, não entende nada de Pré-Paris e da língua do Pré".
Dito isso  pôs-se a cantarolar: "pré-paris, pré-midi, pré-azulê, prèt-à-porte, pré-pererê... lá iê, pererê, lará..."
Marietinha bocejava de sono, mas queria entender aquele linguajar esquisito da Lesma surgida tão de repente no jardim de casa. Lembrou de chamar dona Judith, a coruja letrada que morava num buraco próximo. Quem sabe ela poderia ajudar? Animada com a idéia Marietinha chamou logo Dona Judith, que de longe já acompanhava a conversa da gatinha com a lesma.

Aliás não era só a coruja que acompanhava esse encontro original. Um pequeno grupo se formou nas extremidades do jardim para ver a inquieta Lesminha de cachecol. Afinal, não é todo dia que se vê algo parecido. E lá estavam o Pica-pau, a Dona Preá com os filhotinhos em fila, o Bem-te-vi, o bando de micos listrados. A todo instante o grupo ficava mais numeroso com bicho chegando dos quatro cantos do mundo.


A coruja se aproximou e foi logo dizendo que a Lesminha era filha da terra do Pré-tendido. Um lugar longínquo vizinho à terra da língua do P. Judith  estava curiosa e parou por um tempo pensativa, se perguntando como aquela lesma, reconhecidamente lerda por natureza, conseguira chegar tão longe.

Mas Dona Judith sabia que não era adivinhona e então fez  a pergunta que era pergunta de saber:  "Como foi, Dona Lesma, que a senhora chegou até aqui?"  E a Lesminha respondeu:    "De avião particular! Quer dizer... Mais ou menos particular... Pedi a um gavião faminto que desistisse da idéia de fazer de mim seu almoço e me levasse para conhecer o mundo olhado lá das alturas.
Em troca eu o levaria até um lugar onde poderia se banquetear à farta, em fraque e cartola. Ele aceitou. Estávamos sobrevoando esse jardim quando de repente surgiu um pé-de-vento tão forte que caí, vejam vocês, amparada por macias sedas orientais, com as quais teci esse riquíssimo cachecol." se remexeu sobre as folhas úmidas no chão para melhor mostrar seu cachecol.
Marietinha lembrou a ela que aqueles fios sedosos na verdade eram seus pelinhos tosados. 
A Lesminha inconteste reafirmou categoricamente: "Não. Não é! São fios de seda pura do Oriente!" Novamente fez o movimento para ajustar o cachecol, como se ela tivesse pescoço e precisasse usar um.


A bicharada assistia ao disparate e o mico chefe conhecido por todos como Nove Dedos, disse ao seu bando perplexo:
"Ah! Quero ser mico de circo se essa Lesminha não voltar logo para a terra do Pré! Nunca vi junto tanta pré-tensão, pré-sunção, pré-suposição. Arre! Bem, mas até agora não sabemos o que aconteceu ao Gavião piloto..."
Foi nesse instante que um redemoinho varreu o jardim e dele surgiu o Sacifreuderê.


"Bah! Fui eu guri! Fui eu quem salvou o pobre gavião da Lesminha Pré-desorientada! Criei um pé-de-vento e ela caiu. Foi assim que livrei os ouvidos do pobre do gavião que, com ela, vinha voando e acreditando nas bobagens da Lesminha e quase que ele perdia também o próprio juízo. Barbaridade! Alguém precisava ter pena do crédulo gavião!".
Judith reparou no sotaque gaúcho do Saci e percebeu o quanto o Freud estava se tornando, a cada dia, mais saci do que gato...
E foi tão grande a algazarra no jardim que despertou Frida de seu soninho matinal.
Ela se aproximou do grupo surpresa por ver a Lesminha com um tufo de pelo nas costas.
Enquanto isso a Lesminha voluntariosa queria continuar seu caminho, segundo ela, em direção ao pote de ouro a sua espera na ponta do arco-iris, visto enquanto voava com o intrépido piloto gavião. "Estou certa da localização". - E virando na direção da Fridoquinha falou - "Você aí de pelo branco e preto que chegou agora!  Já que tens quatro patas me será útil para desenterrar o pote de ouro. Venha rápido! Me acompanhe! Santa lerdeza... Depois dizem que as lesmas é que são lerdas. Olhem só para essa quadrúpede, essa sim é que se comporta como uma pamonha amarrada!" Novamente fez um trejeito com o cachecol para demonstrar sua altiva estirpe.                        
Frida não entendera muito bem por que aquela coisica mole tanto se remexia e reclamava. "Será que ainda estou dormindo e sonhando com uma espécie de Lesminha Super star?"
Os bichos reunidos em assembléia esclareceram em coro: "Não Frida. A conversa dela é que parece conversa de sonho e nos deixa um tanto atordoados." E a Lesminha continuava falando toda mandona: "Mas acontece que essa pessoa que vos fala é a rainha soberana da terra dos Pré-tendidos".  Ao que o Nove Dedos completou: "Então essa pessoa que nos fala precisa voltar para o lugar de onde veio. Chamem o Gavião Piloto para levá-la de volta."
A bicharada sentiu grande alívio com a solução do mico. Porém, Marietinha ficou matutando se solução do mico era solução boa, ou solução que livra do aperto sem prever as consequências.

Foi então que ela fez à Lesminha uma pergunta que era  pergunta de entender: "Para que precisa, antes mesmo que para saber antes, inventar um saber não sabido? " E a Lesminha respondeu sem pestanejar: "Para não ficar sempre atrasada, ou só chegar depois que tudo já aconteceu, ou mesmo nunca chegar... Se digo que tem um pote de ouro na ponta do arco iris e eu nunca chegarei lá, então acredito que tem, e assim ele existe e ocupa um lugar dentro de mim. Se estou tão longe da terra dos Pré-tendidos e me sinto tão só e com medo, imagino que sou a Rainha deles e sei que por isso virão me buscar..."
Depois do que disse a Lesminha todo o jardim ficou em silêncio, pois quando há um para que, as coisas ganham sentido.
"Sendo assim, disse o Bem-te-vi quebrando o silêncio  - Aconselho à Senhora Lesminha que volte para sua terra natal. Do que lhe adiantará um pote de ouro se nunca o encontrará e estarás sempre só?"
"Mas o Sr. Bem-te-vi é burrinho assim mesmo? - Perguntou a Lesminha. Não entendeu que eu sei que não sei que há um pote de ouro na ponta do arco iris?" Ao que respondeu o passaro: "Eu entendi sim D. Lesminha. A Senhora é que não entendeu que só se é rainha na própria terra, nem que seja só rainha da própria casa. Vamos, eu a levarei de volta, mas com uma condição: colocarei algodão nos ouvidos durante a viajem . A assembléia formada pelos bichos aplaudiu a solução.  A cobra Jararacuçu não conteve o choro diante de tanta generosidade do Bem-te-vi e enxugou suas lágrimas com as patinhas peludas do gambazinho emocionado sentado ao  lado dela.

O bravo Bem-te-vi voou levando consigo a Lesminha de volta ao lugar onde ela poderia ser como é sem ferir os outros e onde ninguém a julgaria com leis diferentes das suas, afinal ela era filha da terra dos Pré-tendidos.
Lá chegando reencontrou sua mãezinha e correu para abraçá-la. E sua felicidade era tamanha que nem percebeu que o cachecol caíra de suas costas.
Aninhada nos braços da mãe disse baixinho: "Fui parar em  uma terra de bichinhos que nada sabem! Foi assustador."

Assim termina mais uma historinha  para você Carlinhos.
Amor,
Vovó Yesmin.

CCRÉDITOS:

A coruja é um protótipo do artista plástico Nino, de Olinda, PE, Brasil.
É escultor e restaurador. Seus trabalhos em pedra e em  madeira são vendidos nas lojas de artesanato daquela cidade e também faz restauros em Olinda.  Seu ateliê fica no Canal da Malária, entre duas palmeiras imperiais.

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