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9 - Áribo, airibu, urubu, air bus.

Num dia azul de verão, quando Carlinhos foi à casa da vovó tomar  banho de mar, Frida acordou impossível, com 'a vó atrás do toco', assim... um tanto irrequieta.



O sol se levantava, quando Frida resolveu passear na praia. Viu ao longe uma jangada no mar e se animou ainda mais. O dia claro convidava a um alegre passeio sob o coqueiral a farfalhar suas palhas como verdes notas musicais.


Saiu ligeira, a espera dos pescadores acompanhando o arrastão das grandes redes cheias de peixes gostosos e que, ela sabia, sempre ganhava um depois que separavam os maiores dentro do samburá.


Enquanto arrastavam a rede, Frida se distraiu olhando uma tartaruga morta na praia. Não demorou e urubus começaram a sobrevoar a carcaça num vôo planado e manso. Assim que o primeiro urubu pousou ela correu atrás dele numa velocidade impressionante. 

Tanta velocidade chamou a atenção de um dos urubus: "Mas que cachorrinha veloz! - Exclamou ele - Se tivesse asas voaria como nós, os pássaros... "
Frida estava distraída pela idéia de espantar o urubu comilão e por isso não se deu conta do outro urubu, observador, planando acima dela. Ficava zangada com os comedores de carniça. Não gostava nada nada do hábito que tinham os urubus de comer carne fedida e sempre as voltas com um mau cheiro insuportável, muito pior que o cheiro de quem não toma banho há muito tempo. 
"Eles comem peixes podres na beira mar, tartarugas que morrem presas nas redes dos pescadores e toda sorte de animais jogados pelas ondas na areia" dizia em suas reclamações.
Até acrescentou na praia sua própria placa proibindo os pobres urubus de circular por lá.


Enquanto isso, fora da praia, Marietinha dormia seu valioso sono diurno deitada sobre a relva verdinha e fresca. 
0 calor do dia tropical convidava à pachorra, àquela preguiça gostosa que toma, dentro da gente, o espaço do mundo. 
Despertou com latidos bravos vindos da beira mar. 0uviu também o Pocotó relinchar e com tanto barulho não pode mais dormir. Deixou de lado o descanso e foi até a praia onde viu Frida correr em volta da tartaruga espantando o bando de urubus. 
Corria como se precisasse salvar a praia daqueles aos quais considerava maus, nefandos, fedidos, sujos e azarentos. 
Marieta percebeu o urubu observador voando sozinho rumo ao horizonte e nem imaginou para onde iria, mas sentia o cheiro da aventura cada vez que ele batia as asas. " O que aconteceu para voar sozinho? - pensou - se o Sacifreuderê estivesse aqui poderia seguir aquele urubu fujão".

Mas o Freudão só viria no finalzinho do dia. Resolveu, então,  chamar a coruja Judite nas margens do Rio do Forte, pois foi no mangue, entre os galhos emaranhados, que ela encontrou bom abrigo para morar.
Marietinha caminhou pela praia, sob o sol escaldante do verão, e por fim embrenhou-se no manguezal, onde também moravam os caranguejos alaranjados de grandes patolas, que aproveitaram a inesperada visita da gatinha peluda para beliscar suas patinhas. Marietinha não gostou nada nada disso, mas entendeu que os caranguejos não estavam acostumados a ver bichos peludos andando no lamaçal e, curiosos, não perderam tempo em saber como é fofinho o pelo de gato.  
Continuou seu caminho  entrando cada vez mais na mata de troncos tão retorcidos que muitas vezes  ficava impossível passar. Chegou em uma ponte de madeira e viu a toca da coruja no alto dos galhos à distância de um pulo de gato.   
Durante o dia as corujas costumam dormir, pois têm olhos grandes para enxergar na escuridão da noite. O calor estava forte mantendo a coruja entocada.  Sonhava com o Sacifreuderê que ao anoitecer  vinha chamá-la para caçar. E lá dentro do seu sonho ouvia uma vozinha dizendo:
"Don'Judite! Ôoh, Don'Judite!"
 O chamado era tão insistente que acabou por perceber não vir do sonho, mas da ponte lá embaixo.
 Ainda um tanto lerdinha Judite abriu os olhos com dificuldade. Marieta contou o que se passava na praia e como Frida correu atrás dos urubus e um deles voou para bem longe, enquanto os outros ficaram com fome, sem poder comer. 
Judite parou de bocejar e seus grandes olhos amarelados ficaram ainda maiores quando soube do pandemônio. E foi logo esclarecendo: "Pôxa Marietinha o urubu que voou para longe é o observador, o que vigia a comida. Ele plana no céu sobre os alimentos que o bando vai comer. O primeiro a chegar para a refeição é o líder. Ele come e depois deixa quantidade boa para todos os outros urubus. O observador é sempre o último a comer. 
Já sei! Usarei um disfarce de urubu, sobrevoarei a praia e descobrirei o que se passa". 
Assim dito, assim feito. Colocou a peruca preta e voou rumo ao intenso azul celeste, que curiosamente naquela hora já não estava mais tão azul... 
E lá foi ela. Ah! como gostava de voar, mesmo vestindo a peruca que lhe pesava na cabeça. 
Tentou voar como voam os urubus. Fez um grande esforço para tornar seu vôo tão elegante e suave como o deles. Planou desajeitada sobre a carcaça da tartaruga, mas não suportando sustentar suas asas como faz um urubu, caiu estatelada de bico no chão, enquanto sua peruca disfarce foi parar na cabeça da Frida. 
A Coruja, ainda dolorida da queda,  falou determinada: "Ao invés de me disfarçar como urubu, participarei dessa aventura com minha corujice!" - e tocando delicadamente o seu bico já vermelho de tanto doer, lamentou - "Ai! como me dói o bico..." 
E a Frida,  com a peruca da coruja caída na cabeça,  provocou gargalhadas entre os urubus que ela espantava da praia, mas ainda tentavam comer a suculenta refeição. 
O anoitecer chegou mais cedo do que sempre chegava. Marietinha ouviu o cochicho dos urubus comentando entre si, que a luz do sol foi embora junto com o urubu observador.
Sempre que a noite chega o Sacifreuderê volta para casa, contudo ele percebeu que algo muito importante estava acontecendo.
" Mas, que barbaridade! Nunca vi o dia ir embora tão cedo. Bah! Que baita aventura é essa que nos espera gurias?" 
Depois de saber tintim por tintim o que aconteceu, Freudão achou melhor chamar toda a bicharada para, juntos, encontrar alguma solução. E assim fez. Os bichos do lugar trataram logo de atender ao chamado do Sacifreuderê. 
Vieram, um a um, assustados com essa maluquice da noite chegando mais cedo. 
A elegante Jibóia veio sinuosa se enrolar embaixo de um coqueiro. A Cascavel,  tão venenosa, espalhou aos quatro cantos que a Frida ficou com tanta raiva dos urubus que o sol se chateou e foi embora. 
O Bem-te-vi juntou seus filhotinhos e os protegeu sob um manto de ternura, enquanto que a  Maria Farinha achou melhor nem sair de sua toca na areia, pois tinha medo que, assim como o sol foi embora mais cedo, poderia também  voltar tão rápido quanto foi, e ela delicadinha não suportaria tanta luz e calor. Mas tomou coragem para sair até o buraco de entrada do seu túnel para dizer à Frida: " Está vendo só Fridoca, o Sacifreuderê nos ajudará a encontrar uma solução,  pois se depender de você,  continuaremos no escuro!".


"Mas solucionar o quê?".  Perguntou Fridoquinha sem entender o porquê de ninguém lhe agradecer por livrar a praia daqueles airibus
Continuou falando: "Se consegui espantar os airibus para não comer a carne fedida, então já solucionei o problema!".
"Mas Fridoquinha, tá maluquinha, tá? Tá doidinha?" Perguntou o Sagui Nove Dedos, que também participava da conversa junto com seu bando em cima de um cajueiro 


"Você não entendeu que espantou toda a turma de urubus bem na hora mais importante da refeição e os deixou com fome? ". 
"Ah, Sr. Nove dedos, o Sr. não viu que eles estavam querendo comer uma comida fedida? Aquela tartaruga já não era carne fresca, estava rolando com a maré desde cedo.  Precisam escolher coisa melhor. Depois ficarão reclamando de dor de barriga! Além disso eu não gosto deles!".
Dona Judite ponderou para a assembléia apavorada: "Pois bem, não sabemos o que houve com o sol. Naturalmente sentimos raiva e medo quando não entendemos, por isso precisamos ir atrás do entendimento e não temer nada além do que é preciso temer." 
E aquele foi um momento mágico, pois as estrelinhas desceram do céu pontilhando o caminho que de tão iluminado e belo deu vontade de caminhar.


O Sacifreuderê saiu ventando na frente, Marietinha e Frida caminharam sobre o tapete estrelado até chegar à Reserva de Saltinho, e a coruja Judite não perdeu tempo batendo asas na mesma direção. Sacifreuderê avisou que a Reserva de Saltinho era um lugar magicamente enganoso para quem não mora lá. Marietinha não entender nada do que estava acontecendo, mas continuou andando sobre o rastro das estrelas, que parecia querer levá-los Reserva do Saltinho a dentro. Enquanto isso aproveitou para ver aquele cantinho de mundo tão fresquinho. "Como é bom sentir o vento suave que venta aqui." Disse ela.


Os corajosos e desbravadores amigos entraram na densa mata devagarinho, pé ante pé, sem saber o que encontrariam pela frente. Depois de muito andar encontraram uma lagoa e com tanta sede eles pararam para beber da boa água. Mas, não demorou nadinha, foram tomados por um sono desbragado, daqueles que a gente não consegue ficar com o olho aberto mesmo fazendo força.  Então dormiram profundamente. 



 Não demorou e o dia amanheceu. 
"Que estranho... a noite foi embora muito rápido, da mesma maneira que veio. Uuhh! Isso está me cheirando a coisa de Curupira, aquele indiozinho enganador..."  Falou Dona Judite.
Viram uma ponte que dava passagem ao outro lado da lagoa e cismaram... Aquela ponte não estava ali, quando chegaram... Ficaram temerosos, mas precisavam continuar e seguir as pegadas deixadas pelo urubu.


Atravessaram a ponte do rio onde antes era só água de lagoa. Marietinha já sentia dores nas patas e Frida se recusava a dar mais um passo.
"Estamos andando em circulos - Disse Sacifreuderê - Parece coisa de Saci,  mas o Saci sou eu e não tem nenhum outro por perto..."
Marieta reconheceu: " Don'Judite tem razão,  isso é brincadeira de Curupira enganador! Se fosse o Saci Pererê o Sacifreuderê já teria visto". 
 Foi então que viram sair, detrás de uma pequena moita de Bredo, a iguana Arádia dizendo: 

"Não sou Curupira, sou Arádia, a Deusa romanana e vim em forma de lagarto para suportar o calor tropical. Áribo me chamou para interceder por seu bando. "

"Quem é Áribo?" Perguntou Frida implicante. "Por aqui só conheço os airibú!" . 
" Não é airibú Frida. É urubu" Disse Arádia. 
Mas Fridoquinha, que continuava reinando, protestou: "Não,  não é não!  Aqui nesse país a gente dá o nome de A I R I B Ú! Deve ser Áribo lá no país de onde a Senhora veio."

" Au, au, Frida. Eu vim de air bus, depois de ouvir os lamentos de um pobre urubu chamado Áribo, que na língua do Brasil, antes que chamasse Brasil, significa acima, no alto. Este é seu nome, porque é função que tem junto ao seu bando, Estar no alto cuidando que os outros se alimentem. Como já está velhinho ficou assustado com seu latido forte, Frida, e teve medo de cair. Resolveu que se não poderia mais ajudar seu bando, então já não teria serventia. Veio para a Reserva de Saltinho se protegeu.  Guiei vocês através do caminho de estrelas para que me encontrassem neste lugar...". 
Marieta subiu numa árvore para ver e ouvir atentamente.  Ficou encantada pela graça imponência de Arádia. "Pôxa! Nunca vi uma deusa romana! Como ela é bonita e suave! Essa conversa até me deu soninho".

Mas Frida não compreendia para que tanto nhennhennhen. Falou para Arádia: " Mas a culpa não é minha se eles querem comer carne fedida!" 
Arádia concordou:" Você não tem culpa, Fridoquinha, por isso não tente fazer com que eles comam coisas que não são para eles. 
Quando comem a carne que ninguém mais quer, na verdade estão ajudando a todos os outros seres vivos a não adoecer. Eles deixam as praias e as matas limpinhas." Frida falou aliviada: " É mesmo. Mas... Ninguém poderá dizer a eles que fede?" E a deusa retrucou: " Para eles o cheiro é delicioso! Acredite!"
"Eca!" Reconheceu Frida. E, balançando o rabo, voltou à alegria de sempre. Entendeu que não poderia mudar os urubus e que a natureza deles faz bem a todos os seres vivos. Tratou de voltar logo à praia com todos os amigos lembrando de retirar a placa de Proibido airibú! 

Correu feliz para contar a todos os bichinhos do lugar que  Áribo estava de volta e por isso a noite e o dia voltariam a ser como sempre foram.
Com todo o engano esclarecido, Arádia se transformou novamente num Air bus e foi embora para um tempo tão antigo que ninguém se lembra mais quando foi. 

Assim, Carlinhos, termina a história em que a Fridoquinha começou com raiva e terminou calminha como sempre é.
Amor,
Vovó.

Fotos das praias de Lagoa do Pau e Lagôa Azeda, AL. Brasil.